Personalidade e temperamento nas crianças

Personalidade e temperamento nas crianças

É comum ouvir-se que uma criança tem uma personalidade forte, mas em que idade se forma a personalidade? Pode-se falar em personalidade na primeira infância? E temperamento? Pode-se alterar certas características? Este artigo procura esclarecer alguns destes conceitos.

O temperamento é diferente da personalidade, sendo o primeiro um conjunto de características inatas, ao passo que a segunda é construída ao longo da vida, numa complexa interação entre o temperamento e as experiências da pessoa, desde a infância até a idade adulta. As experiências que vão contribuir para a consolidação da personalidade são de naturezas variadas, incluindo elementos da história pessoal nas suas interações sociais e culturais, bem como as influências do momento histórico. Algumas das experiências que são de grande influência para a estruturação da personalidade na vida adulta ocorrem na primeira infância, sendo a vinculação parental, os modelos de parentalidade e a perceção de segurança, estabilidade e confiança no ambiente em que vive cruciais. Conforme as vivências, vão sendo estruturados modelos internos na criança, organizando a forma como ela percebe a si mesma, ao mundo e aos outros. Ao longo da vida, estes modelos vão sendo readaptados e modificados conforme as interações da criança com outras pessoas e outros contextos. É apenas no final da adolescência que estes modelos se constituirão na personalidade, que se torna mais estruturada, sendo a tarefa normativa principal desta fase da vida a consolidação da identidade.

Desde a infância, a perceção de ser amado e cuidado, de viver num ambiente seguro e de ser valorizado nas suas expressões singulares e na sua exploração do mundo são elementos essenciais para a consolidação de personalidades saudáveis. É possível a modificação da personalidade na idade adulta, no entanto é algo muito mais exigente, não somente pela consolidação de certas crenças e formas de ser e estar, como pela diminuição da plasticidade neural com a idade (i.e., aquilo que torna a arquitetura cerebral mais flexível e maleável). Tudo depende de uma complexa interação entre a genética e o ambiente.

O temperamento é um conjunto de características inatas da criança, que influenciam na forma como esta experiencia o mundo e reage ao mesmo. Quando falamos do temperamento da criança, falamos de características como a intensidade emocional (reações emocionais intensas positivas ou negativas ou mais suaves, menos expansivas), o nível de atividade (muito ativo, não para, ou mais sossegado), a persistência/tolerância à frustração (crianças que persistem nas atividades, mesmo perante dificuldades, e não frustram tanto, outras que desistem e frustram facilmente), de distração (crianças que conseguem manter o foco mesmo com vários estímulos ou pequenos desconfortos, outras que se distraem com qualquer coisa), de regularidade (crianças que são muito regulares nas suas funções biológicas de apetite, sono e eliminação, outras que não tem esta regularidade), sensibilidade a estímulos (crianças muito sensíveis a estímulos desde sons, sabores, texturas, temperaturas, que notam logo pequenas alterações, outras menos sensíveis a estas alterações, que dormem em qualquer lado, comem qualquer coisa, etc.), aproximação (crianças que avançam logo perante novos sítios, situações, pessoas, outras que ficam mais retraídas, que se mantêm mais afastadas e hesitam mais), adaptabilidade (crianças que se adaptam facilmente a mudanças e transições, que em pouco tempo ficam bem, outras que têm mais dificuldade nesta adaptação que choram ou ficam mais perto do cuidador antes de avançar) e humor (crianças com humor mais positivo, que estão sempre mais sorridentes e bem-dispostas, outras que têm um humor mais negativo, não sorriem tanto, ficam mais sérias, mais pensativas).

Perante as diferenças de temperamento, é importante por um lado a aceitação e a compreensão das singularidades da criança, por outro dar respostas adaptadas e diferenciadas para apoiar o desenvolvimento da criança consoante o seu temperamento (ex. se o vosso filho tem mais dificuldade na aproximação a novos sítios, situações ou pessoas, precisa de mais tempo e de maior apoio nesta aproximação, que provavelmente terá de ser mais gradual e trabalhada/acompanhada). Como também já referido, para a estruturação de uma personalidade saudável, é importante que cada um se sinta respeitado na sua singularidade, assim como tenha a perceção de continuidade e estabilidade nas suas relações e rotinas. Adaptar-se ao temperamento da criança nem sempre é fácil, sobretudo quando o temperamento dos pais é muito distinto do da criança.

Outra coisa importante a ressaltar é que se pode chegar a diferentes personalidades e formas de ser partindo-se de temperamentos e níveis de desenvolvimento parecidos ou completamente diferentes, pois o trajeto de desenvolvimento da criança depende de múltiplos fatores. Assim, é essencial que os pais não se apeguem a idealizações e expectativas, pois embora tenham a sua responsabilidade, não depende só deles. Acima de tudo, é fundamental estabelecer e manter, ao longo de diferentes fases da vida, uma vinculação segura com os filhos, estando disponível, sendo sensível às necessidades dos filhos e respondendo a estas com carinho e afeto, apoiando e incentivando a exploração do mundo, bem como estando lá como porto seguro para confortar e proteger quando necessário. Estas necessidades são fundamentais ao longo de toda a vida, apenas tendo certas variações conforme a idade e nível de autonomia de cada um dos membros da família.

Por fim, deixo abaixo algumas dicas:

  • Não se cobre muito, nem cobre demasiado ao seu filho, caso ele não se apresente com as características que esperava. Valorize o seu filho como é.
  • Os filhos não nascem para corresponder às expectativas dos pais. Não as imponha.
  • O seu filho não é igual a si, é ele próprio e precisa de se construir. Permita que ele se construa da sua maneira.
  • O caminho para uma personalidade saudável advém do experienciar de relações de afeto, seguras e estáveis ao longo da vida, bem como do experienciar limitações e dificuldades com as quais se aprendeu a lidar de modo adaptativo. Proporcione este tipo de relações e limites.
  • A autenticidade é fundamental para uma personalidade saudável. Respeite as singularidades da criança, a sua forma única de ser e estar.
  • Se tiver muita dificuldade em lidar com o temperamento da criança pode ser benéfico procurar ajuda profissional para ter mais autoconhecimento, compreendendo porque algo o incomoda e aprendendo estratégias para lidar com conflitos de uma forma mais adaptativa.
Ana Lúcia Senise

Ana Lúcia Senise

  • Licenciada em Psicologia (Universidade de São Paulo)
  • Mestre em Psicologia Clínica e da Saúde (Universidade Católica Portuguesa de Lisboa)
  • Psicóloga estagiária na associação Caminhos da Infância

VER PERFIL DO AUTOR ›

Artigos Relacionados

Dicas Parentais | 2 minutos de leitura

5 riscos no regresso à escola!

A dita “nova normalidade” tem muito pouco de normal....

Ler mais ›

Dicas Parentais | 2 minutos de leitura

Como ajudar o meu filho a lidar com o isolamento?

O que andamos a perceber por estes dias é que a...

Ler mais ›

Dicas Parentais | 3 minutos de leitura

Como posso ajudar o meu filho a resolver problemas?

Aprender a resolver problemas é uma competência...

Ler mais ›

Descubra mais sobre a Caminhos da Infância